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28 de março de 2016

Felipe Callipo - santeiro barroco em pleno século 21


Conheci Felipe Callipo e seu belíssimo trabalho no pavilhão de artesanato do 'festival' de que tanto tenho falado por aqui: o Revelando São Paulo. No Revelando, Felipe representa sua cidade, Pindamonhangaba, expondo suas peças de grande valor artístico.

Felipe é santeiro à moda antiga: faz santos barrocos com toda a expressividade e paixão dignas duma peça do autêntico Barroco - estilo artístico impulsionado pela Igreja (a católica, única dominante no mundo ocidental de outrora) em "resposta" à Reforma Protestante, quando valores e conceitos que passavam a ser condenados e abandonados por esta (como o luxo nos templos ou a legitimidade da "santidade" dos santos, por exemplo) foram retomados com força total e ainda maior calor "glorificante", graças à linguagem barroca, cheia de apelos plásticos sensoriais de que se valeu a Igreja para causar maior comoção em suas "ovelhas" e "capturá-las" num sentimento de "fidelidade" e "dever cristão".

O mais interessante disso tudo, a meu ver, é que essa linguagem barroca (sob o aspecto da plasticidade) adquiriu, no Brasil, caminhos e saídas "sinuosos" (como a própria estética Barroca, aliás), de um modo todo especial, tornando-se (ouso dizer - em coro com outros que já o disseram antes) a manifestação artística onde, pela primeira vez, pudemos passar a apreciar traços, aspectos e soluções nossos, em ruptura com moldes e padrões estéticos que vinham (como sempre, então) de Europa. O Barroco, no Brasil, teve um aspecto ímpar. Aqui ele ganhou nuances mestiças, a nossa "cara" e o nosso "jeitinho". 

Desde as feições "sem igual" dos personagens de Antônio Francisco Lisboa (o "Aleijadinho"), extremadamente angulosas e dramáticaspassando pelo "improviso" das colunas de madeira com pintura marmorizada (na falta da pedra valorosa e autêntica) e das singelas e pueris "Paulistinhas" (como ficaram conhecidas algumas peças, produzidas sobretudo no Vale do Paraíba, que traduziam o desejo das camadas mais pobres da população de também poderem manifestar e viver a sua fé dentro de suas casas); até a "ousadia" de se retratarem Madonas e anjos de 'traços mulatos' em pinturas no interior de algumas igrejas - como o fizeram Manoel da Costa Ataíde, em Minas Gerais, e Padre Jesuíno do Monte Carmelo, em São Paulo... Por tudo isso o Barroco, aqui, teve aspectos reveladores de uma identidade brasileira - ainda em formação.

Sobre um dos 'anjos mulatos' do Padre Jesuíno do Monte Carmelo há uma história (no mínimo, gracejosa) que eu não posso deixar de replicar aqui. Mário de Andrade a publicou. Diz que, ao ser questionado por um seu superior por que razão um dos anjinhos que pintava no teto da igreja estava "saindo tão escuro", Padre Jesuíno teria respondido que "faltou tinta, senhor Lourenço, faltou tinta!" ...

Podemos dizer que o Barroco se manteve fértil no Brasil lá pelos idos de milessetecentos, mileoitocentos (e tataravó mocinha), mas é certo que os aspectos da sua produção artística permanecem influenciando o fazer criativo de nossos artistas e artesãos até os dias de hoje, de modo consciente em alguns casos ou, em outros, entranhado nas nossas reminiscências subjetivas - aquelas que carregamos e expressamos sem o saber, sem que nos apercebamos delas ou pensemos a respeito.

Felipe Callipo é moço novo. Deve ter seus trinta e tantos anos (37, ele me confirmou). E se dedica, dentre outras coisas, a criar santos barrocos. E o faz de modo incontestável... e placidamente! Porque o Felipe cria com o "pé nas costas" e de "olhos vendados" (afora a maestria!) peças que referenciam (e reverenciam!) a produção artística do período barroco no Brasil. Formas sinuosas, volumes e policromias se revelam em expressões cheias de sentimento, panejamentos exuberantes e figuras corpulentas, com barriguinhas salientes ou bochechas gorduchas em rostos angulosos de nariz caprichosamente afilado... Felipe Callipo lança mão dos padrões estéticos, dos conceitos e da expressividade típicos do nosso Barroco mais rico, criando Anjos, Santos e Nossas Senhoras que facilmente poderiam ocupar altares nas igrejas históricas do nosso país sem causar estranheza alguma, dando-nos a clara impressão de que sempre estiveram ali!


Coisicas Artesanais - Felipe Callipo e o Barroco no século 21
Lindíssima e arrebatadora Conceição de Felipe Callipo! - Foto: Simone dos Santos

Felipe Callipo cria peças de uma beleza barroca que eu diria arrebatadora! É impossível não ficar imantado diante de uma obra sua - mesmo que você nunca tenha se interessado pelo barroco! O seu traço, afinal, para além dos conceitos estéticos classificatórios deste ou daquele estilo, é de uma força e de uma expressividade comoventes! Te tocam, te seduzem, te tomam, te inspiram... Te fazem viajar no espaço e no tempo... 

Coisicas Artesanais - Felipe Callipo
Padroeira de "Pinda" - Nossa Senhora do Bom Sucesso, de Felipe Callipo.
(Poderia estar num templo barroco do interior do país, não?) 
 Foto: Simone dos Santos

Apesar de tão novo, o Felipe é muito consciente da sua arte, é um estudioso. E artista carismático. Das vezes que o encontro no Revelando, o Felipe sempre me instiga a estudar mais, a conhecer mais. Fala de barroco e, sobretudo, do barroco paulista (pouco (re)conhecido no Brasil), fala de exposições imperdíveis, mostra fotos, conta sobre livros de arte recém-adquiridos... No período em que eu fazia aulas de escultura, o Felipe, sabendo disso e ouvindo o relato das minhas dificuldades, fazia "narizes" e outras partes de corpo para me mostrar como é fácil (!) - infelizmente, nunca pude concordar com ele... E, obviamente, ele também fala de outros assuntos... como, por exemplo, futebol (com meu marido. Nessas horas eu fico "boiando" e aproveito para fazer fotos das suas obras expostas...). É um cara incrível que, mais que difundir e vender suas obras, quer compartilhar conhecimento! É certo que tenho aprendido muito com nossas prosas, enquanto ele vai criando novas peças ali mesmo no pavilhão de artesanato do Revelando São Paulo, onde constantemente nos encontramos. 

E é incrível como, no meio duma "prosa besta", contando "causos" e "jogando conversa fora", as mãos do Felipe vão erguendo figuras imponentes, solenes ou sofridas, dum certo barroco brasileiro, assim... como quem nada quer... Por isso eu disse que ele cria obras "com o pé nas costas e de olhos vendados". Porque muitas vezes eu o vejo criando peças belíssimas com a naturalidade e a despretensão de quem descasca uma laranja distraidamente... Ele está ali conversando com você, proseando e te dando atenção, mas o que ele está criando nesses momentos "à toa" são peças de inegável valor artístico, carregadas de força e dramaticidade barrocas!

Coisicas Artesanais - Felipe Callipo
Ainda inacabado: conversa vai, conversa vem, assistimos a este Francisco Xavier nascendo das mãos de Felipe.
 Foto: Simone dos Santos

Quem quiser conhecer mais um pouquinho do trabalho desse artista incrível, cheio de um carisma discreto e dono de um talento sem medidas, pode acessar sua página e se encantar de beleza barroca! Aqui, ó: Oficina do Barro.


Leia aqui a entrevista que Felipe Callipo concedeu ao Coisicas Artesanais!
  
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Breve roteiro barroco MG/SP para amantes do tema (ainda que iniciantes e/ou leigos como eu) - Viagens, passeios e leituras sugeridos:


Aproveitando que, neste post, eu falei dum cara que me inspira sempre a buscar mais conhecimento, quero também compartilhar algumas dicas extras sobre "coisas" que foram comentadas aqui - para o caso de elas terem causado curiosidade em alguns dos meus (talvez 6) leitores... 

Para se impactar com a verdade das feições angulosas e a expressividade dramática dos personagens de Aleijadinho, vá a Congonhas do Campo, em Minas Gerais, e visite a Basílica Bom Jesus de Matosinhos, sobretudo as Capelas dos Passos, na subida para a Basílica. Também lá, sobre o muro que cerca o adro, estão os seus Profetas.

Para ver de perto a Nossa Senhora mulata de Manoel da Costa Ataíde, visite a Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto, também em Minas Gerais. Lá dentro, sua "Assunção", ou "Porciúncula", no forro da nave principal (provavelmente a obra mais conhecida e comentada de sua autoria) revela uma Nossa Senhora de feições negras e de pele parda - como a minha (e, talvez, também como a tua). 

Obs.: Tanto em Congonhas como em Ouro Preto é possível apreciar a arte de ambos, Aleijadinho e Mestre Ataíde, com obras por um esculpidas, pelo outro pintadas. 

Sobre a produção das Paulistinhas e sobre seu mais conhecido artista popular, Dito Pituba, o médico e pesquisador Eduardo Etzel deixou livros interessantes publicados a respeito (estão esgotados, mas ainda é possível encontrá-los em sebos). 

Para ver de perto peças do barroco paulista e, sobretudo, as pitorescas Paulistinhas, faça uma visita (ou muitas!) ao Museu de Arte Sacra de São Paulo (do ladinho da estação Tiradentes do metro paulistano). 

Ainda em São Paulo, no Museu Afro Brasil, é possível visitar uma sessão dedicada exclusivamente aos aspectos artísticos/estéticos do legado negro nas obras do período colonial brasileiro. (Aleijadinho e Padre Jesuíno também são lembrados aqui). O museu fica dentro do Parque Ibirapuera.

Sobre vida e obra do Padre Jesuíno do Monte Carmelo, há um livro de título homônimo escrito por Mário de Andrade (o último de seus livros, aliás) em que o pesquisador, após levantar dados documentais e baseados em relatos orais, "recria" a história do padre mulato, viúvo e pai de quatro filhos vivos, numa espécie de "conto biográfico" - como o próprio autor classificou. Indico a edição de 2012, que (além da história deliciosamente escrita por Mário de Andrade) traz artigos e fotografias, bem como algumas notas do autor que não constaram das edições mais antigas).

A maior parte dos afrescos pintados por Padre Jesuíno retratando alguns anjos e santos mulatos se encontra nas igrejas da cidade paulista de Itu, sobretudo a de Nossa Senhora do Carmo. Na cidade também há uma igreja erguida por ele com ajuda de seus filhos: Nossa Senhora do Patrocínio.

E sobre a formação da identidade cultural brasileira, não se atendo ao tema do barroco, mas tratando das nossas brasilidades num panorama mais amplo, o livro "Histórias Mestiças", com organização de Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz, traz uma seleção de textos documentais e resenhas com relatos e reflexões escritos e publicados desde os primeiros anos do nosso "descobrimento" até a modernidade.

Boas leituras e ótimas viagens! :)
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